sexta-feira, 2 de maio de 2014

Anacrônico

Um gramofone é anacrônico, mas é um charme só.

Eis que em meio às minhas leituras, a palavra anacrônico aparece de supetão e assalta toda a noite. Num conto, num poema, num artigo? Não lembro em qual texto ela estava, por que, num átimo, ela se fez mais importante que tudo. “Vou jogá-la numa crônica e ver que bicho sai!” decreto para depois desistir e logo decretar de novo, como se vê. O texto se desenvolverá filho de uma palavra.
Antes de qualquer tentativa, vou ao dicionário me certificar sobre seu significado. Não há a dúvida, mas mesmo as certezas precisam se fortalecer para que sejam, em sua superficial existência, absolutas. Essa, nesse caso, é. Anacrônico é mesmo algo “que está em desacordo com a moda, o uso, constituindo atraso em relação a eles” ou, ainda mais, “avesso aos costumes hodiernos; retrógrado”. A palavra, devidamente significada, precisa agora de uma crônica que a comporte. Não uma crônica anacrônica que, mais que rima rica e óbvia, não venceria o dia seguinte em sua existência. Seria, no muito, uma peça escrita numa noite como tantas. Tudo graças a uma palavra que aparecera num texto que li e nem me recordo qual foi.
Com dois parágrafos em adiantado, a crônica se desenrola. Paro e penso como dar à palavra – feia, concordemos – um texto que fuja do adjetivo que ela representa. Trago a mim lembranças de momentos anacrônicos, busco em minha breve lista de conhecidos e amigos, pessoas anacrônicas, fatos anacrônicos por mais modernos que sejam. Encaixo algumas pessoas e seleciono alguns fatos. As pessoas tiro por não serem só anacrônicas, mas terem qualidades que deixam tal anacronismo como uma mancha imperceptível na existência e na relação. Os fatos mereceriam mais atenção devido ao seu anacronismo, mas percebo a armadilha: Se eu falar sobre os fatos anacrônicos, essa crônica será igualmente anacrônica. Eles me venceriam e rebaixariam um pedaço da minha obra à categoria que pertencem. Não quero a perenidade eterna do meu texto. Não sou arrogante a esse ponto. Também não acho que nenhum escrito meu mereça o condenável esquecimento ao último ponto. É preciso que alguém, nem que seja uma única pessoa nem que seja a minha mãe, leia isso e comente, mesmo sem ser ouvida. Uma sobrevida pobre, mas digna. Um texto anacrônico teria esse sucesso, mesmo efêmero?
Paro e recordo que muitos grandes escritores, se lidos nos tempos de hoje, seriam tomados por anacrônicos. Muitos falam sem timidez de escrever à máquina. Quem escreve à máquina hoje? Jamais pensariam eles, às voltas com suas máquinas de escrever, que haveria anos depois a Internet. Que um computador faria o que fazem as suas máquinas e muito mais. Alguns falam sobre fumar, uma propaganda discreta, mas aberta sobre o tabagismo, hoje anacrônico como demonizado. Conforme ando para trás em lembranças de autores, por mais que sejam célebres em seus livros e sua obra, sempre há um anacronismo. Ruas que não mais existem, trajes que não mais se usam, hábitos que não mais se cultivam... A Eternidade traz no seu bojo sua própria moda que não tem eco nos dia de hoje como não teve em outros. Palavras, gírias, contextos. O mundo evolui, nossas vanguardas são caretice quando menos esperamos.
É em meio a esse turbilhão (que alguns do meu tempo chamariam jocosos de “viagem” e sabe-se lá como se chamará depois) que constato tristemente: A literatura é anacrônica. Escrever é anacrônico. Temo que ler também o seja. Situação estranha. Não queria ser anacrônico, mas digito anacronismos continuamente. Poupei pessoas que julguei anacrônicas, mas me descurei. Uso palavras que, quem ler eventualmente num momento de flashback, não saberá o que elas significam, pois são anacrônicas. Tão anacrônicas quanto a própria crônica casual e sem bandeiras, sem defesas apaixonadas por cores ou ideias. A sensação, ao chegar aqui, é de derrota. O desejo é de apagar tudo isso e tentar não ser anacrônico, viver o atual, o que chega. Mas quantos escritores, muito mais a frente dos seus tempos, hoje continuam a frente de um tempo que eles nunca ousariam viver? Não são muitos, um ou dois. Talvez estes sejam iluminados, ungidos e com talento atemporal. Quantos atemporais existem em áreas além da Literatura? Os mestres? Os cristos? Os budas? Não seriam eles também, mesmo lembrados pelos séculos e séculos, anacrônicos? Já não os são, para muitos? Reflito. Continuo meu anacronismo e a crônica anacrônica, com rima rica e óbvia sai. Será anacrônica, sim. A partir de quando não sei e não me importa. Mas prefiro a certeza de que logo ela e eu acompanharemos, arrogantemente, os gênios, os sábios, os mestres, os cristos e budas a buscar uma modernidade que dificilmente irei alcançar. Assim sendo, encerro esta crônica sem pensar nessa palavra da definição dicionarizada hodierno. Que outro, num tempo futuro, se inspire, como eu me inspirei numa palavra de um texto qualquer e faça fama melhor que a minha com essa crônica. Agradecerei a homenagem quando seu autor se juntar a nós, anacrônicos.

Francisco Libânio,
10/03/14, 11:14 PM

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