sexta-feira, 23 de maio de 2014

Abandono

Onde já se viu?

Tínhamos ido ao shopping juntos. Eu não queria ir, mas houve, por que não dizer?, uma coação. Disse que eu poderia ser útil para alguma eventualidade. Já desconfiei que as coisas estavam erradas a partir daí. Não podia dar certo esse passeio. Eu, pelo menos, já via de antemão que não me divertiria. Mas fui assim mesmo.
O dia estava lindo. Um sol aberto num céu azul. Ele sempre gostou de sair durante o dia. Dizia que as noites eram feitas pra dormir. Não que eu discordasse, mas a noite tem um clima melhor pra sair. Chegamos a um restaurante. Lá, sem me consultar, pediu um prato a seu gosto. Obviamente não me ofereceu, no que fez bem. Seria desagradável recusar. Eu nem gosto de comida chinesa e ele se fartou. Comeu como um animal. Assisti àquela cena esperando acabar logo. Quando acabou, não me deu a menor atenção. Começou a ler um livro e olhar as mulheres que passavam. Não me incomodou. Nunca tivemos compromisso, nem pretendíamos, mas era muita desfaçatez. Ele era muito safado. Um galinha assumido. Não tinha como a coisa ser pior. Ou, pior, eu achava que não tinha.
Ouvi-o dizer (porque não teve nem mesmo a decência de me falar, apenas soltou no ar) que iria ao banheiro. Fiquei em meu lugar esperando. Certamente, ele iria voltar, me buscar e esse passeio horroroso iria acabar. Pelo contrário. Sem que me visse, eu o vi saindo do banheiro, nada sorrateiro, e tomando algum rumo desconhecido. E eu lá, só. Xinguei-o mentalmente. É pra isso que você me leva aos seus passeios, cachorro? Me fala como eu vou ser útil se você me deixa de lado, seu ordinário! Lógico que ele não ouviu. Ainda bem que não sou de falar ou faria um escândalo como ele nunca viu. Esse tipo de desaforo eu não aceito. Nos esbarraríamos ainda.
Esse esbarrão, com o passar do tempo foi ficando pra depois e bem depois. Deu-se, mais ou menos, uns quarenta minutos e nada dele voltar. Abandono completo. Onde estará esse calhorda? Minha espera ficou aflitiva quando um funcionário do shopping me tomou pela mão e sem mais aquela me levou da mesa onde estávamos. Poderia contar ele tudo o que tinha se passado, de como esse meu parceiro de passeios faz desfeitas com suas companhias. Mas se ele não estava com paciência pra ouvir lamentações, eu também não sabia expor minha vida diante de estranhos. Conduziram-me coercitivamente para uma sala que eu não sabia descrever o que era. Apenas muitos objetos colocados ordenadamente. Agora a coisa complicou. Como ele iria me achar ali? Eu nunca quis ter um celular, e não seria isso que me faria mudar de ideia. Pois bem. Se ele não vier me buscar, volto pra casa, mesmo que seja a casa de outro. Vou ser útil pra outro.
O lance é que ele demorava mesmo e, pelo visto, pouca gente andava por aquele recinto do shopping. Os funcionários naquele setor eram de falar pouco embora não fossem mal educados. Já via tudo. Teria a hora que me dispensariam. Como eu voltaria pra casa? Sem dinheiro pro ônibus, uma caminhada seria dolorosa. Certamente eu o encontraria em casa. Se acontecesse, o bicho ia pegar. Pois quando menos espero, ouço uma voz conhecida vinda de uma sala anexa. Suponho que seja ele e que esteja perguntando sobre mim. Na mosca! É quando o vejo chegando e, de longe, me reconhecendo. Assina alguns papéis e sai da sala de achados e perdidos com o guarda-chuva, que só na cabeça dele seria útil num dia tão limpo quanto aquele. Deixa estar. Quando precisar de mim, após essa presepada vou emperrar e ele que se molhe todo.

Francisco Libânio,
28/04/14, 7:14 PM

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