Tudo começou no fatídico momento em que acordei e aquela
quinta-feira começou para mim sem a perspectiva de nada especial. O café da
manhã foi o frugal de todo dia. Um copo de leite, um pão com manteiga.
Quis comer algumas bolachas para poder reforçar o estômago.
Não tinha bolacha. Anotei na caderneta. Comprar bolacha após o trabalho. Não
esquecer (eu sempre esquecia).
Ao sair para o serviço, ao tomar o ônibus, um evento que
deixou o dia menos interessante. Meu ônibus saiu sem mim. Talvez eu tivesse me
demorado pensando nas bolachas e esqueci do ônibus. No que toca à pontualidade
sou de uma exatidão britânica. Não foi o caso hoje. Certamente, eu levaria um
esporro do meu chefe. “Pô, logo você se atrasando?! Onde vamos parar?”
Ao chegar ao trabalho, a notícia que aliviou. Meu chefe
também atrasou. Mandou avisar que o carro tinha quebrado e que achar mecânico
àquela hora estava fogo. Infelizmente não teria um superior para dar o esporro
que ele daria se tivesse chegado antes de mim. Não quis saber. Meti-me em minha
mesa e comecei a descascar os abacaxis do dia. Que não eram poucos. Uma hora
após a chegada de todo mundo, o bonito chegou. Pediu desculpas, disse que isso
não é exemplo e que ele, como chefe, devia ser o exemplo. Deu vontade de ser o
líder de uma revolução naquela microcélula capitalista. Mas não dava tempo. A
mesa estava cheia de papéis pra assinar, memorandos pra redigir e tempo de
menos para resolver tudo. Enquanto isso, o chefe tomava uma xícara de café,
terminava seu último cigarro e foi para sua sala. Por um desses infortúnios,
minha mesa era próxima de sua sala.
O que eu sei é que a manhã foi terrível. Primeiro pelo
trabalho, que era puxado (eu, que sou pontual, precisava ser menos
procrastinador, menos amigo do último momento) e depois pelo meu chefe.
Enquanto eu estava assinando papéis, redigindo memorandos, o biltre gritava
para quem quisesse ouvir com o mecânico de seu carro. Chamou-o de filho da puta
pra baixo. Xingou tanto a mãe do pobre homem que eu seria capaz de dizer que
ele já tinha saído com ela uma tantas vezes e comido a mulher outras tantas. O
lance é que, durante a manhã, meu chefe não fez absolutamente nada relativo ao
seu mister. Seu carro estava enguiçado na avenida principal, ele teve que tomar
um táxi, uma nota (os táxis na cidade são pela hora da morte, por que ele não
anda de ônibus?) e o mecânico disse que a coisa era mais séria que se previa. O
conserto ficaria, pelo que entendi, um táxi e meio. Ou dois ou três. Bateu o
telefone e foi almoçar. E eu estava à base de barrinha de cereal.
À tarde, ele resolveu trabalhar, o que eu estava fazendo
desde que cheguei. Cheguei atrasado, mas peguei o touro na unha. Ah, se eu
fosse resolver qualquer problema pessoal no meu worktime... Continuei minha labuta. Tomei um café, comi umas
bolachas (no serviço tinha, ainda bem, mas eu já tinha perdido o tesão, era
fome). Foi, de fato, uma tarde sem problemas se eu desconsiderar meu chefe
bufando na sala dele quase querendo matar um.
No final do expediente, que resolvi estender para compensar
meu atraso, toca o celular do meu chefe. Era a esposa do meu chefe. Não sei o
que aconteceu, mas a discussão foi feia. Chamou a mulher de vadia, de rampeira
e de tudo que era nome. Mandou ela e o professor da academia para o inferno.
Parecia que eles iam para outro lugar e que o casamento tinha acabado. Bufando,
espumando, olhos injetados, atendeu, outra vez, o celular. Era o mecânico
dizendo que o problema no seu carro era muito grave. Muito pior do que ele
imaginava, que já era pior do que estava presumido. Mandou o mecânico à merda
até que, do nada, silenciou. Eu estava terminando um último memorando. Além do
quê, nunca fui de me envolver em problemas particulares dos outros. Tinha mais.
Eu e meu chefe nem éramos próximos. Ele me chamava pelo sobrenome como a todos
ali. Pelo menos, a barulheira tinha acabado. Vinte minutos depois, outra
barulheira. Dona Eduarda, a secretária, foi levar um recado ao chefe e saiu
gritando. O escritório se alvoroçou. Quando fui ver o acontecido dei pelo fato.
Meu chefe estava morto. Um ataque cardíaco fulminante. Era muito estresse, era
muito cigarro e agora o carro estropiado e a mulher pedindo a conta. Toca a
ligar pra funerária, pra esposa do chefe (“Não quero nem saber, foi tarde o
miserável!” teria dito pra dona Eduarda quando telefonou para comunicar), marca
velório, marca funeral. Quando eu vi que meu serão já demorava quarenta
minutos, fechei meu dia. Cheguei atrasado, trabalhei a mais e ainda tive que
presenciar um corpo morto. Eu queria que fosse um dia normal, não tinha
perspectiva nenhuma pra nada e tudo que vi hoje foi confusão, estresse e um
infarto. Não quero mais saber disso. Mudar de emprego eu não vou, mas
procurarei ser mais pontual que já sou. Odeio quebra de rotina.
Francisco Libânio,
09/03/15, 6:49 PM
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