domingo, 22 de fevereiro de 2015

Caso dos rins

Seria uma manhã de sábado normal, com café, computador e um pouco de TV pra ver se acontecia algum jogo. Naquele tédio sem fim, às vezes esperava que acontecesse algo para mudar o cotidiano sabatino. E eis que tocam a campainha.
Olho pela janela. Quando é gente de igreja, despeço educadamente e digo que estou tomando café, que já tomei. Mas não era gente de igreja. Era um homem bem vestido, cara séria. Não parecia ser pedinte. Trazia uma maleta. Me viu pela janela e pediu dois minutos da minha atenção. Fui ver o que se tratava.
- Bom dia, eu me chamo... E o senhor me parece ser um homem de boa saúde, estou errado?
De fato, minha saúde andava bem. Nada a reclamar dela. Confirmei o que ele supôs. Ele agradeceu a deus por mim e continuou:
- Mas nunca sabemos quando algo pode nos acontecer, não é? Por isso tenho uma proposta muito interessante que vale a pena o senhor considerar.
Pronto. Eu não sabia que planos de saúde agora ofereciam vendas no porta-a-porta. Muito bem. Eu já tenho um plano de saúde, vamos ver, no entanto, o que ele oferece. Nunca se sabe. Que continue:
- Nunca sabemos como é o dia de amanhã. A gente pode estar bem num momento e no outro não estar nem mais aqui. Então, o que eu proponho pro senhor?
O que ele me propõe? Vamos ver...
- Eu tenho um rim perfeito. Você sabe que um problema renal pode acabar com um homem. De repente, ele pode parar de funcionar, de filtrar as impurezas e seu corpo pode contrair sabe lá quais doenças.
Pois bem. Se tem algo com o qual não preciso me preocupar são meus rins. Meu coração talvez por tanta porcaria que como. Meu pâncreas, uma tendência ao diabete, algo assim. Meus rins estão bem. E explico isso. Estão bem os dois.
- Mas rim é que nem peça de carro. Pode estar bem hoje e pifar amanhã. Do nada. Então, por isso, tenho aqui dois rins de excelente qualidade e se o senhor precisar estarão à disposição.
Claro que o rapaz esqueceu a possibilidade que nunca se descarta da rejeição, da incompatibilidade, mas a conversa estava boa e eu fiquei curioso. Vamos ver os valores. Pedi os preços.
- Cada rim sai por vinte mil reais, o que daria, matematicamente, quarenta mil reais. Mas como não queremos que o senhor tenha um problema com os dois rins e vai que acontece (nunca se sabe...), os dois sairiam trinta mil reais. Fora uma taxa.
- Taxa? – perguntei. Agora tenho que pagar imposto por um negócio absolutamente ilegal?
- É o que chamo de taxa de cuidado. – explicou – Enquanto o senhor não precisar dos rins, eu fico com eles, procuro mantê-los saudáveis. Então é um negócio interessante. E nem tem período de carência. Se amanhã o senhor começar a ter problema, depois de amanhã o transplante tá garantido.
No mais, agradeci. Realmente, não preciso de um rim, muito menos de dois. Que ele procurasse outro e que, se sua situação fosse tão grave a ponto de precisar vender órgãos, eu poderia recomendá-lo a um amigo que precisa de vendedores, pois vi que ele tinha jeito pra coisa. Recusou a recomendação, deu bom dia e foi embora. Voltei para meu sábado modorrento e minha vida seguiu.
Uns dois ou três meses depois, eu abro o jornal e está no obituário a foto do meu ilustre vendedor. Morreu no dia anterior. Sabendo onde seria o velório, passei por lá pra prestar condolências. Conversando com amigos seus, descobri que a morte foi devido a uma nefrite mal cuidada. Os rins do moço eram completamente doentes e ele nunca cuidou disso. Saí de lá desejando uma refeição aos vermes que se fartarão desses rins pútridos. E de graça.

Francisco Libânio,
02/08/14, 10:18 AM

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