sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A musa da Zona Norte


- O senhor precisa conhecer a Micaela, seu Wallace. Uma moça das mais lindas que eu já vi. E não é opinião só minha, não. Lá na comunidade, todo mundo acha a mesma coisa. Os caras são vidrados nela. Se o senhor quiser, trago ela pra apresentar pro senhor.
O conselho foi dado pelo Zacarias, office-boy daquela agência de modelos num dos pouquíssimos encontros com o chefe supremo do lugar. Óbvio que ele conhecia mulher bonita de longe. O problema é que, na cabeça dele, havia um protótipo de beleza definido, bem acabado e que existia aos montes. Todas na Zona Sul, é claro. Ele andava pela orla e via centenas dela. Algumas achavam que era cantada barata e mandavam o moço passear quando não mandavam os namorados, maridos, noivos e congêneres resolver o assunto na brutalidade. Outras, loucas pelo sucesso fácil e pelas portas que se abririam com o corpo escultural, não pensavam duas vezes. Fosse preciso tirar a roupa em plena Avenida Atlântica não tinha problema. Mas na Zona Norte? Wallace conhecia quase nada de lá. Subúrbio nunca foi seu forte. Era arraigado demais à sua realidade e deixava o mundo exterior para os subalternos, com quem pouco conversava sobre até essa conversa.
- Sei não... – respondeu ele – Acho que ela não deve ter o perfil que a nossa clientela espera.
Ah, sim... Tinha esse lado, a clientela. Como toda agência de bacana que ficava em Ipanema, a clientela que procurava os serviços era da vizinhança. Gente que não precisava andar de trem pra trabalhar, não tinha esse perfil nem precisava dele. No entanto, Zacarias, que devia conhecer bem a Micaela, insistiu:
- O doutor tá perdendo uma chance de ouro, seu Wallace. A Micaela pode num ser que nem as moças que o doutor contrata, mas garanto que põe todas elas no bolso quando o assunto é beleza! E de mais a mais, o que o senhor ia perder? Se não gostar dela, o senhor não gostou e pronto. Ela volta pra casa e segue a vida como vendedora. É que ela sempre quis ser modelo, manja?
A insistência e os bons antecedentes de Zacarias valeram a pena. Ele não era desses que arrumavam mulher em qualquer buraco, nos bailes mais podrões da periferia que nem já viu com outros colegas dele. Feito, marcou uma entrevista com Micaela para dali dois dias. Se ela agradasse, seria contratada. No dia marcado, eis que aparece Micaela. Negra retinta, olhos vivos, cabelos com tranças rastafári (naturais, ela dizia, nada de aplique) e um sorriso sempre aberto. Tinha vinte e um anos. Estava com Zacarias. A intimidade dos dois fez um monte de gente perguntar se tinha alguma coisa ali:
- Tem nada! Ela é uma irmã pra mim.
Quando “seu” Wallace chegou à agência, topou com a moça e ficou espantado. Tá certo, ela era bonita, tinha um rosto perfeito. Claro, não era loira nem tinha jeito de rata de praia ou de academia como a maioria das suas contratadas, mas tinha algo sobre o qual ninguém tinha falado. Chamou Zacarias numa sala à parte e disse:
- Zacarias, você disse que a moça é bonita e tal, mas não contou disso que eu vi agora.
- O quê, Doutor?
- Zacarias, essa menina está acima do peso de modelo, não percebeu?
- Gorda?
- É, gorda. Não serve! A gente trabalha para um público de geração saúde. Uma mulher dessas que não pode ser. Ia jogar contra nossa agência, entendeu?
- Mas, doutor... A Micaela é uma gata!
- Gata, coisa nenhuma. Ela não serve, Zacarias. Nem adianta entrevista com ela. Não serve pro nosso público alvo. Peça desculpas à sua amiga e diga que não dá, tá?
Zacarias é que não ia discutir ordem de chefe. Conversou com Micaela e foram embora. Wallace, talvez, tivesse sido duro demais, mas não podia trair seu público. Tocou sua vida e Micaela a sua. A vendedora da Zona Norte, por sua vez, não ficou muito tempo no comércio. Um outro olheiro achou a moça por aí, gostou dela e apostou numa vertente nova, as modelos para as mulheres reais. E deu certo. Em seis meses, ela deixava Madureira para se instalar num apartamento pequenininho na Zona Sul. E com vários convites para trabalhos pelo Brasil.

Francisco Libânio,
07/01/11, 8:27 PM

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