sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Mito


Achava sua vida normal demais. Todo dia acordar às seis e meia da manhã, café preto, ônibus para o trabalho e trabalho até as cinco da tarde. Depois, ônibus pra casa, jantar com a esposa, jornal à noite, novela com a esposa e cama. O dia seguinte, la même chose. Encheu dessa coisa igualzinha em que o que mudava eram a janta, as notícias e a novela. Resolveu que precisava por um ponto final nisso.

Para tanto, primeiro, se separou da mulher e mudou de casa. Depois pediu as contas do trabalho e depois mudou de cidade, de país e de nome. Também mudou de história. Inventou um passado mirabolante. Do simples homem classe média de sempre, passou a dizer que era um príncipe abandonado pelos pais, reis europeus depostos, e criado por camponeses que lhe ensinaram as artes da guerra e da paz. Contou que conhecia um sábio ermitão que contou todos os segredos do universo e que uma tribo de homens alados o ensinou a voar. Contou, ainda, que foi casado com uma deusa asteca com quem teve um filho invisível que andava com ele por onde fosse. Isso e mais um monte de bossas, mas era tão eloqüente que seus novos conterrâneos acreditavam em tudo o que dizia. O prefeito da cidade onde morava logo fez aliança política com ele, com seu filho invisível e com sua esposa asteca que, por ser uma deusa, só o encontrava em noites de lua cheia numa clareira onde só eles podiam estar. Alguém resolveu perguntar sobre a clareira e procurá-la. Quando soube que isso despertaria a ira de sua esposa e que isso custaria todas as vidas da cidade, a começar pelas crianças, as mães do lugar, desesperadas, amarraram o incrédulo. Todos os dias era procurado por autoridades e consultado sobre os mais diversos assuntos. Também tinha em sua cama as mais formosas mulheres. Perguntado sobre seu casamento com a deusa asteca, respondia que ela permitia que ele as tivesse. Dessa forma poderia ungi-las e dar filhos de linhagem nobre àquela pequena cidade esquecida por Deus. Tanto que teve quarenta e sete filhos com vinte e oito esposas. Houve quem achasse um absurdo, mas ele era da mesma forma admirado e odiado pelos homens como amado pelas mulheres.

Um dia, anunciou a todos que teve um encontro com sua esposa e ela viria buscá-lo para ficar eternamente ao seu lado e que ela, agradecida com o carinho e a devoção que a cidade rendera a ele, faria chover ouro e flores. Estranhamente, dois dias depois disso, o homem desapareceu. Foi encontrado morto numa outra paragem, muito distante daquela onde passou sua nova vida, com outra identidade. Diziam que ele era filho de uma humana com um urso sagrado, casado com uma ninfa e fora baleado por um pagão que o encontrou com a esposa. O assassino disse que as últimas palavras dele foram “Irás para o Inferno!” e ele respondeu “Tudo bem, lá eu termino o que vou começar agora”. E acertou quatro tiros a queima roupa.


Francisco Libânio,

03/05/10, 10:24 PM


2 comentários:

Emilene Lopes disse...

Bela crônica...Você conseguiu prender-me na leitura...
Obrigado pelas visitas e pelo carinho...
Bjs
Mila

Wanderley Elian Lima disse...

Quanta imaginação, a história prende a atenção até o fim. Amei
Um abraço