sexta-feira, 2 de julho de 2010

O Citador


- Nietzsche disse...

É claro que Nietzsche nunca teria dito aquilo. Não o que o rapaz falou. Primeiro porque o bigodudo alemão nunca falaria sobre aquilo. Segundo porque o citador sequer leu um livro do mesmo em toda sua vida. Mas é claro que a citação conferia ao interlocutor certa grandiloqüência em sua opinião. E claro, quem iria discutir com Nietzsche? Naquela roda apartada da festa em que o uísque já dava a sua quarta dose pra cada um dos conferencistas é que não haveria homem pra isso. Mas o citador seguiu em suas parvoíces, claro, todas referendadas pelo filósofo.

Era o grande mal do rapaz. Adorava apelar pra filósofos, escritores, literatos e toda a sorte de intelectuais. Muitas vezes em horas inoportunas. Sem dúvida. Oscar Niemayer jamais teria dito qualquer coisa sobre a questão das células tronco. Tampouco Sartre falaria sobre a Guerra do Afeganistão. Mas na voz do nosso amigo que amava as citações, muitas inventadas, coadunadas aleatoriamente com o primeiro nome respeitoso que lhe passava, todos esses grandes mestres seriam responsáveis pelos maiores absurdos que o planeta teria ouvido. Sua intelectualidade aparente assustava os debatedores leigos. Ou seja, ganhava os colóquios nunca no grito já que treinara certa fleuma para soar mais convincente, mas simplesmente por falta de argumentação que lhe superasse.

Para os amigos, o citador era um baluarte do bom saber. Plural e eclético, qualquer assunto lhe saía bem da boca. Tido como homem de letras finas e leituras complexas, era rapidamente consultado para dirimir qualquer dúvida que surgisse entre eles. Para os desafetos, tratava-se de um sujeito pedante e sem qualquer brilhantismo além de ser desprovido de ideias próprias já que nunca expunha suas opiniões ou seus pareceres. Deixava que seus tutores intelectuais o fizessem. Muitas vezes desconfiavam do que dizia, mas lhes faltava cabedal para contestar.

Foi quando certa vez, num encontro entre amigos, sempre os mesmos, mas com um novato recém apresentado, um assunto mais denso caiu naquela roda de papo. O tema: Literatura russa. A questão? Qual dos dois era o maior expoente das letras daquele país Dostoievski ou Tolstoi? Os Irmãos Karamazov ou Guerra e Paz? Todos já tinham ouvido falar nas duas obras, mas nunca se aventuraram a lê-las. Fala que fala, nosso citador só escutava as arengas até que lhe foi perguntada a opinião:

- Eu guardo com muito respeito a opinião de Marx que dizia ter ido às lágrimas com a saga da família Karamazov. E se assim diz o velho Marx, quem sou eu, mero admirador tanto de Dostoievski quanto dele, para contestar?

Nisso, o novato fez algo que ninguém imaginou haver ousadia para fazer:

- Eu respeito muito a opinião de Marx, mas é preciso pesar também que seu grande colaborador, Engels, enquanto russo que era e, por isso conhecia de perto a realidade do país pré-revolução, tinha sem igual admiração por Tolstoi e só nisso discordava de Marx. Inclusive, é sabido que mesmo que Marx preferisse Dostoievski, foi de Guerra e Paz que ele tirou elementos preciosos para escrever o Manifesto do Partido Comunista.

O citador ficou impressionado. Ele e o seu colega de citações foram amigos para sempre e grandes admiradores um do outro. Finalmente havia alguém para conversar num mesmo nível. Claro que ninguém naquela roda onde surgiu tamanha admiração se lembrou que Engels nunca foi russo e que entre a obra comunista e o romance russo havia mais de vinte anos separando. Meros detalhes.


Francisco Libânio,

30/06/10, 2:57 PM


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