terça-feira, 20 de novembro de 2012

Consciência

Nossas duas mãos.


Vivo num país com poucos heróis. Talvez, até, pelo pouco de história que esse país tenha, falte um Robin Hood, uma Joana D’Arc ou um Guilherme Tell. Nunca acreditei que um país fosse grande por conta de seus heróis até porque não existem heróis unânimes e absolutos. Robin Hood é contestado e mais visto como um criminoso do que como mocinho. Joana D’Arc foi condenada pela Igreja e reabilitada recentemente. O herói está na mais na identificação que no exemplo.
Vivo num país em constante formação e transformação como todos, mas num país que teve seu DNA forjado por gente que, se perguntada, preferiria não ter vindo pra cá. Por gente que vivia a liberdade irrestrita em seu chão para, noutro momento, estar acorrentada e vendida. Gente que virou subgente e que de guerreiros e heróis para os seus passou a ser moeda de troca, força de trabalho escrava e humilhada de todas as formas. Mas gente que sem a qual esse país não seria o que é.
Vivo num país miscigenado e orgulhoso de sua miscigenação, mas reticente e evasivo quando se fala em valorizar as raízes dela. Num país que se orgulha de ter todas as cores em seu povo, mas privilegia veladamente uma em razão das outras. Vivo num país maravilhoso e de gente receptiva aos olhos de quem não é daqui, mas extremamente segregacionista se visto por uma parcela dos meus. Parcela composta por aquela gente cujos avós talvez não preferissem estar aqui, mas já que vieram forçados decidiram num acordo tácito que mudariam definitivamente a cultura nacional. Mais que isso. Decidiram que criariam uma cultura nacional. Mesmo que essa nação não fosse a deles.
Vivo num país que demorou além da conta para perceber que escravidão é algo desumano e que já estava na hora de dar um basta nisso. Num país que foi acabando com ela paulatinamente mais por pressão externa do que por atitude própria. Vivo num país em que a filha de um imperador é tida por redentora da liberdade por assinar um papel que decretava a morte de algo que já estava morto. De um governo que encerrou um capítulo sujo da história, virou heroína ganhando dia a ser comemorado por abolir a escravidão e só. Vivo num país que viu escravos livres ao mesmo tempo que desamparados. Que teve o fim de algo oficial para um fato velado. Vivo num país que uma princesa fez algo pela metade e virou celebridade histórica.
Ao mesmo tempo, vivo num país em que um insurgente contra a escravidão foi, por anos, tomado como um delinquente como foi tido em sua época. Um adepto da liberdade virou um bandido precisando ser reabilitado séculos mais tarde. Um candidato a herói que, no caminho ao topo e mesmo lá, teve apontado mais seus erros do que suas glórias como se quem o acusasse fosse infalível e perfeito. Vivo num país que vem tentando pagar sua dívida histórica com essa gente trazida à força pra cá. Muito foi feito, muito foi conquistado. Em muito se acertou como em muito se errou, normal, a vida é feita dos dois lados. Vivo num país em que parte da população escarnece essa outra parte eu luta pelos seus direitos, que vê nesse libertário um herói. Vivo num país em que essa mesma população que escarnece a outra não se dá conta o quanto essa outra contribuiu para que ela estivesse lá. Mais, que a parte a escarnecer não percebe que tem muito de si ligada a outra. Sanguineamente, inclusive.
Vivo num país em que ter orgulho de ser negro é taxado de racismo pelos brancos. Num país em que um dia em memória de Zumbi é tido como exagero e outro em memória de Tiradentes é orgulho porque ele tentou nos livrar do jugo português. Vivo num país que nossos avós negros ajudaram a construir debaixo de chicote e não são reconhecidos. Vivo num país que se orgulha de um magistrado negro presidindo a Suprema Corte, mas que nada ou pouco faz pelos filhos de escravos a viver marginalmente. Vivo num país que me deu sangue negro mesmo sendo branco e que muitos mais brancos que eu têm a mesma origem, mas que por algum motivo inescusável refutam isso. Vivo num país em que tudo isso, todo esse suor e lágrimas, toda essa diferença, toda essa segregação desembocou num feriado para pouca gente. Do feriado até abro mão. Da consciência que ele propõe não.

Francisco Libânio,
20/11/12, 9:29 PM

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