Nossas duas mãos.
Vivo num país com poucos heróis. Talvez, até, pelo pouco de
história que esse país tenha, falte um Robin Hood, uma Joana D’Arc ou um
Guilherme Tell. Nunca acreditei que um país fosse grande por conta de seus
heróis até porque não existem heróis unânimes e absolutos. Robin Hood é
contestado e mais visto como um criminoso do que como mocinho. Joana D’Arc foi
condenada pela Igreja e reabilitada recentemente. O herói está na mais na identificação
que no exemplo.
Vivo num país em constante formação e transformação como
todos, mas num país que teve seu DNA forjado por gente que, se perguntada,
preferiria não ter vindo pra cá. Por gente que vivia a liberdade irrestrita em
seu chão para, noutro momento, estar acorrentada e vendida. Gente que virou
subgente e que de guerreiros e heróis para os seus passou a ser moeda de troca,
força de trabalho escrava e humilhada de todas as formas. Mas gente que sem a
qual esse país não seria o que é.
Vivo num país miscigenado e orgulhoso de sua miscigenação,
mas reticente e evasivo quando se fala em valorizar as raízes dela. Num país
que se orgulha de ter todas as cores em seu povo, mas privilegia veladamente
uma em razão das outras. Vivo num país maravilhoso e de gente receptiva aos
olhos de quem não é daqui, mas extremamente segregacionista se visto por uma
parcela dos meus. Parcela composta por aquela gente cujos avós talvez não
preferissem estar aqui, mas já que vieram forçados decidiram num acordo tácito
que mudariam definitivamente a cultura nacional. Mais que isso. Decidiram que
criariam uma cultura nacional. Mesmo que essa nação não fosse a deles.
Vivo num país que demorou além da conta para perceber que
escravidão é algo desumano e que já estava na hora de dar um basta nisso. Num
país que foi acabando com ela paulatinamente mais por pressão externa do que
por atitude própria. Vivo num país em que a filha de um imperador é tida por
redentora da liberdade por assinar um papel que decretava a morte de algo que
já estava morto. De um governo que encerrou um capítulo sujo da história, virou
heroína ganhando dia a ser comemorado por abolir a escravidão e só. Vivo num
país que viu escravos livres ao mesmo tempo que desamparados. Que teve o fim de
algo oficial para um fato velado. Vivo num país que uma princesa fez algo pela
metade e virou celebridade histórica.
Ao mesmo tempo, vivo num país em que um insurgente contra a
escravidão foi, por anos, tomado como um delinquente como foi tido em sua
época. Um adepto da liberdade virou um bandido precisando ser reabilitado
séculos mais tarde. Um candidato a herói que, no caminho ao topo e mesmo lá,
teve apontado mais seus erros do que suas glórias como se quem o acusasse fosse
infalível e perfeito. Vivo num país que vem tentando pagar sua dívida histórica
com essa gente trazida à força pra cá. Muito foi feito, muito foi conquistado.
Em muito se acertou como em muito se errou, normal, a vida é feita dos dois
lados. Vivo num país em que parte da população escarnece essa outra parte eu luta
pelos seus direitos, que vê nesse libertário um herói. Vivo num país em que
essa mesma população que escarnece a outra não se dá conta o quanto essa outra
contribuiu para que ela estivesse lá. Mais, que a parte a escarnecer não
percebe que tem muito de si ligada a outra. Sanguineamente, inclusive.
Vivo num país em que ter orgulho de ser negro é taxado de
racismo pelos brancos. Num país em que um dia em memória de Zumbi é tido como
exagero e outro em memória de Tiradentes é orgulho porque ele tentou nos livrar
do jugo português. Vivo num país que nossos avós negros ajudaram a construir
debaixo de chicote e não são reconhecidos. Vivo num país que se orgulha de um
magistrado negro presidindo a Suprema Corte, mas que nada ou pouco faz pelos
filhos de escravos a viver marginalmente. Vivo num país que me deu sangue negro
mesmo sendo branco e que muitos mais brancos que eu têm a mesma origem, mas que
por algum motivo inescusável refutam isso. Vivo num país em que tudo isso, todo
esse suor e lágrimas, toda essa diferença, toda essa segregação desembocou num
feriado para pouca gente. Do feriado até abro mão. Da consciência que ele
propõe não.
Francisco Libânio,
20/11/12, 9:29 PM
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