sexta-feira, 25 de abril de 2014

Dedicatória

Minhas crônicas, algumas, são baseadas em fatos reais. E alguns livros eu guardo com mais carinho que os outros, tipo esse.

Adoro sebos. E num deles, passeando atrás de novos livros velhos, um, de dado autor que gosto muito, me chamou a atenção tanto pela ótima conservação em que se encontrava quanto pelo preço, que fazia um custo-benefício perfeito. Não tive dúvidas em levar o livro pra casa.
É quando chego que começo a notar que o livro, aparentemente bem conservado, não o estava tão bem conservado assim. Em suas páginas contra a lombada estava escrito o nome da ex-dona, Naiara Melo Aguiar e na última página, uma dedicatória em belas letras:
“À minha querida sobrinha Naiara, um presente carinhoso e muito bem escolhido. Como me disse que gostava desse escritor, não tive dúvidas em compra-lo. Folgo em saber que o prazer da leitura compraz minha sobrinha. Que seja mais um entre muitos livros que você leia. Da sua tia Márcia. Feliz aniversário”
Muito bem. Agora me sentia com algo que definitivamente nunca deveria ser meu às mãos. Por acaso, eu tenho em minha estante um livro, de outro autor, dado de presente por uma tia minha. Não foi de aniversário. O motivo do regalo, eu não o lembro, mas foi dado de coração por uma tia. Tanto que valeu uma bonita dedicatória também, exclusiva. O autor não é um dos meus preferidos ainda que muita coisa dele, de fato, me agrade, e muito. Gosto menos dele do que de quem escreveu o livro que roubei no sebo. Sim, roubei, porque me julguei receptador de algo que não podia estar em minhas mãos. Fui ludibriado pelo sebo. A moça do caixa poderia ter visto o nome nas páginas do livro e me avisado: ‘Senhor, este livro tem um nome marcado. O senhor o quer mesmo assim?”. Essa advertência faria toda a diferença. Não o quereria. Eu não me chamo Naiara, não tenho uma tia chamada Márcia tampouco nunca almocei um domingo sequer nas casas dos Melo e nem dos Aguiar. Não tive o prazer de dizer à minha tia que gostava do autor A ou B. Meu livro foi comprado no escuro, mais movido pelo gosto de ler, do qual compartilho com a anônima Naiara, e pelo carinho parental de uma tia que me quer bem. Minha tia – é bem capaz – não faz ideia dos escritores que gosto ou não. Nunca conversamos sobre literatura em nossas reuniões em família. Isso nunca me fez falta. Sempre tive assuntos diversos com minha tia e literatura não estava entre eles. Mesmo assim ela acertou ao me dar o presente como acertou a “tia” Márcia ao agradar sua sobrinha. Pra ela a coisa foi mais fácil, já que ela teve uma dica. Minha tia foi na raça. Chegou à livraria, pediu alguma orientação, explicou por cima como é o sobrinho, que ele gosta de escrever, é meio metido a poeta. Imagino que a moça que a atendeu, diferente da moça do caixa no sebo, teve essa preocupação “Olha, acho que ele vai gostar desse aqui. Se ele gosta de poesia, esse autor é o preferido entre muitos poetas. Tenho certeza que ele vai adorar”. Foi assim, com o mínimo de informação, mas o mesmo desvelo e o mesmo carinho que minha tia comprou o livro e escreveu algumas palavras legais, colocou nelas a alegria em dar um presente para seu sobrinho metido a escritor, metido a poeta e me entregou o livro em mãos. E saiu dessa cerimônia prosaica com uma certeza: Esse livro ficaria pra sempre na estante dele. Como está no exato momento em que rememoro tudo isso.
A culpa por ter roubado o livro deu lugar, então, a uma enorme indignação. Oras, então é assim que funcionam as coisas? Uma tia, sabendo que a sobrinha gosta de certo autor, compra um livro novinho pra ela, escreve-lhe algumas palavras carinhosas e dá o livro pelo aniversário da menina (ou moça. Não sei quanto anos a Naiara fazia, aliás, nem sei quem seja essa Naiara) para depois, essa mal agradecida desfazer do presente o dando a um sebo para ser revendido por uma ninharia? O livro está bem cuidado, aspecto conservadíssimo, sem marcas além do nome e da dedicatória. Isso é coisa que se faça com um presente?  Fiquei muito bravo. Eu nunca faria isso ainda que eu não tivesse o menor contato com uma tia minha. Tive vontade de pesquisar o nome na lista telefônica, descobrir quem é a tal Naiara Melo Aguiar e passar uma descompostura. E para caprichar ainda mais, eu ainda procuraria quem é a “tia” Márcia e contaria tudo: “A senhora não faz ideia do que sua ‘querida sobrinha’ Naiara fez com aquele livro maravilhoso que deu a ela de aniversário. Ela simplesmente o descartou como uma revista velha e o deu a um sebo”. Poderia causa um grande mal-estar em família. A “tia” Márcia não daria nem mais um folheto de presente à sua sobrinha desnaturada. Isso não se faz! Onde está a consideração? Poderia ser uma briga feia.
Poderia. Mas eu não estava a fim de causar nenhuma celeuma familiar com gente que nunca vi mais gorda. Li o livro, que de fato é muito bom. A “tia” Márcia acertou em cheio e a Naiara tem, de fato, muito bom gosto. Ao terminar, li e reli a dedicatória. Presumi que a “tia” Márcia, pela bela letra, devia ser professora. No dia seguinte, pus de lado a culpa em ter roubado um livro que não era meu, a indignação com uma pessoa mal agradecida que se desfaz de um presente e a vontade de me meter nessa relação, fui ao sebo e devolvi o objeto do crime a eles. Que outra pessoa se sinta ludibriada em possuir um livro marcado pelo carinho alheio e se vingue disso causando uma briga lítero-familiar. A partir daquele momento, nada disso mais me pertencia.

Francisco Libânio,
09/02/14, 11:30 PM

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