Minhas crônicas, algumas, são baseadas em fatos reais. E alguns livros eu guardo com mais carinho que os outros, tipo esse.
Adoro sebos. E num deles, passeando atrás de novos livros
velhos, um, de dado autor que gosto muito, me chamou a atenção tanto pela ótima
conservação em que se encontrava quanto pelo preço, que fazia um
custo-benefício perfeito. Não tive dúvidas em levar o livro pra casa.
É quando chego que começo a notar que o livro, aparentemente
bem conservado, não o estava tão bem conservado assim. Em suas páginas contra a
lombada estava escrito o nome da ex-dona, Naiara Melo Aguiar e na última
página, uma dedicatória em belas letras:
“À minha querida sobrinha Naiara, um presente carinhoso e
muito bem escolhido. Como me disse que gostava desse escritor, não tive dúvidas
em compra-lo. Folgo em saber que o prazer da leitura compraz minha sobrinha.
Que seja mais um entre muitos livros que você leia. Da sua tia Márcia. Feliz
aniversário”
Muito bem. Agora me sentia com algo que definitivamente
nunca deveria ser meu às mãos. Por acaso, eu tenho em minha estante um livro,
de outro autor, dado de presente por uma tia minha. Não foi de aniversário. O
motivo do regalo, eu não o lembro, mas foi dado de coração por uma tia. Tanto
que valeu uma bonita dedicatória também, exclusiva. O autor não é um dos meus
preferidos ainda que muita coisa dele, de fato, me agrade, e muito. Gosto menos dele do
que de quem escreveu o livro que roubei no sebo. Sim, roubei, porque me julguei
receptador de algo que não podia estar em minhas mãos. Fui ludibriado pelo
sebo. A moça do caixa poderia ter visto o nome nas páginas do livro e me
avisado: ‘Senhor, este livro tem um nome marcado. O senhor o quer mesmo
assim?”. Essa advertência faria toda a diferença. Não o quereria. Eu não me
chamo Naiara, não tenho uma tia chamada Márcia tampouco nunca almocei um
domingo sequer nas casas dos Melo e nem dos Aguiar. Não tive o prazer de dizer
à minha tia que gostava do autor A ou B. Meu livro foi comprado no escuro, mais
movido pelo gosto de ler, do qual compartilho com a anônima Naiara, e pelo
carinho parental de uma tia que me quer bem. Minha tia – é bem capaz – não faz
ideia dos escritores que gosto ou não. Nunca conversamos sobre literatura em
nossas reuniões em família. Isso nunca me fez falta. Sempre tive assuntos
diversos com minha tia e literatura não estava entre eles. Mesmo assim ela
acertou ao me dar o presente como acertou a “tia” Márcia ao agradar sua
sobrinha. Pra ela a coisa foi mais fácil, já que ela teve uma dica. Minha tia foi
na raça. Chegou à livraria, pediu alguma orientação, explicou por cima como é o
sobrinho, que ele gosta de escrever, é meio metido a poeta. Imagino que a moça
que a atendeu, diferente da moça do caixa no sebo, teve essa preocupação “Olha,
acho que ele vai gostar desse aqui. Se ele gosta de poesia, esse autor é o
preferido entre muitos poetas. Tenho certeza que ele vai adorar”. Foi assim,
com o mínimo de informação, mas o mesmo desvelo e o mesmo carinho que minha tia
comprou o livro e escreveu algumas palavras legais, colocou nelas a alegria em
dar um presente para seu sobrinho metido a escritor, metido a poeta e me
entregou o livro em mãos. E saiu dessa cerimônia prosaica com uma certeza: Esse
livro ficaria pra sempre na estante dele. Como está no exato momento em que
rememoro tudo isso.
A culpa por ter roubado o livro deu lugar, então, a uma
enorme indignação. Oras, então é assim que funcionam as coisas? Uma tia,
sabendo que a sobrinha gosta de certo autor, compra um livro novinho pra ela,
escreve-lhe algumas palavras carinhosas e dá o livro pelo aniversário da menina
(ou moça. Não sei quanto anos a Naiara fazia, aliás, nem sei quem seja essa
Naiara) para depois, essa mal agradecida desfazer do presente o dando a um sebo
para ser revendido por uma ninharia? O livro está bem cuidado, aspecto
conservadíssimo, sem marcas além do nome e da dedicatória. Isso é coisa que se
faça com um presente? Fiquei muito
bravo. Eu nunca faria isso ainda que eu não tivesse o menor contato com uma tia
minha. Tive vontade de pesquisar o nome na lista telefônica, descobrir quem é a
tal Naiara Melo Aguiar e passar uma descompostura. E para caprichar ainda mais,
eu ainda procuraria quem é a “tia” Márcia e contaria tudo: “A senhora não faz
ideia do que sua ‘querida sobrinha’ Naiara fez com aquele livro maravilhoso que
deu a ela de aniversário. Ela simplesmente o descartou como uma revista velha e
o deu a um sebo”. Poderia causa um grande mal-estar em família. A “tia” Márcia
não daria nem mais um folheto de presente à sua sobrinha desnaturada. Isso não
se faz! Onde está a consideração? Poderia ser uma briga feia.
Poderia. Mas eu não estava a fim de causar nenhuma celeuma
familiar com gente que nunca vi mais gorda. Li o livro, que de fato é muito
bom. A “tia” Márcia acertou em cheio e a Naiara tem, de fato, muito bom gosto.
Ao terminar, li e reli a dedicatória. Presumi que a “tia” Márcia, pela bela
letra, devia ser professora. No dia seguinte, pus de lado a culpa em ter
roubado um livro que não era meu, a indignação com uma pessoa mal agradecida
que se desfaz de um presente e a vontade de me meter nessa relação, fui ao sebo
e devolvi o objeto do crime a eles. Que outra pessoa se sinta ludibriada em
possuir um livro marcado pelo carinho alheio e se vingue disso causando uma
briga lítero-familiar. A partir daquele momento, nada disso mais me pertencia.
Francisco Libânio,
09/02/14, 11:30 PM