Diga que não é verdade...
- Então você é um rebelde? – perguntou surpreso.
- Fui. – respondi.
- Que massa! Achava que eles não existiam mais! Na verdade,
achava que eles nunca existiram. Que era conversa de professor de História. Não
acredito em professores de História.
(Depois soube que seu pai era professor de História, que
nunca se deram bem porque o homem demorou a assumi-lo como filho e só o fez
porque não tinha saída. Daí o descrédito, quase ódio.)
Aquele adolescente acabava de me ver como um herói só porque
há muitos anos eu fui um rebelde. Queria ser também, mas faltava contra o que
se rebelar. Tinha medo de parecer ridículo. Pra ele, o termo rebelde existia por existir. Rebelde só
a novela e isso, para ele, era pejorativo. Se aquilo fosse ser rebelde, o mundo
tinha acabado de vez. Não valia a pena. Da minha parte, essa repentina
admiração não me envaidecia. Pelo contrário, me assustava. Cheguei a ter medo,
mas se eu demonstrasse isso àquela hora um mundo em construção ruiria. Segurei
as pontas:
- Olha, já faz tempo... – eu disse.
- Não importa! Importa que o senhor tem alma rebelde. Uma
vez rebelde, sempre rebelde, né?
A admiração se personificou naquele “senhor” que antes era
“você”. O moleque estava encantado. A responsabilidade dobrava. Só porque fui
rebelde há anos.
E nem foi essa rebeldia de pegar em armas. Eu era pouco mais
velho que ele quando fui rebelde. Era o governo do Figueiredo, aquele que dizia
que prendia e arrebentava. Prendia nada! Arrebentava coisa nenhuma! Ele era
mais bundão que eu. A ditadura estava morrendo de velha e senil e a
democratização estava a caminho. Eu era auxiliar no jornalzinho da escola.
Estava no colegial e, influenciado por alunos cujos pais tinham sido presos e
torturados, mas tido a sorte de estarem vivos – ou não –, achava que já era
hora dos fardados voltarem para os quartéis e deixar o povo tomar o poder. Olha
como eu era bobo! Povo no poder! O que se seguiu nada tinha de povo. Mas eu
acreditava nisso. Pintamos cartazes, gritamos frases de ordem. Teve as
passeatas das Diretas. Fui a uma ou duas, mas mais pela bagunça e depois ia
beber com alguns amigos. Alguns bem politizados. Outros eram iguais a mim,
estavam na onda, mas eram metidos a líderes:
- Falta pouco, gente! Comeremos o peru desse Natal sob o
discurso de um presidente dos nossos. Logo esse velho ranzinza vai ficar com os
cavalos dele e nos deixará em paz.
Contei isso e mais detalhes ao garoto, que me ouvia imóvel.
Parecia esperar que eu e uma milícia rebelde invadíssemos o Palácio do Planalto
e tocássemos o Presidente dali debaixo de tapas e cassetetes. Notei que a
narrativa, aos poucos, o frustrava, mas estava mandando a real. No entanto,
detectei esperanças nele.
Esperanças que eu também tinha. No ano em que Tancredo
morreu entrei para a faculdade de Economia. Eu ainda era bixo, calourão, mas
era claro e cristalino que o Sarney com seus planos, seu corte de zeros,
congelamento, tudo nunca ia conseguir combater inflação nenhuma. Estava perdido
o bigodudo! A mensalidade da faculdade subia, o dinheiro do meu primeiro emprego
ia todo nela e nem sempre dava. Queríamos nos rebelar e nos rebelamos. Fizemos
protestos contra os aumentos. Não deu em nada. Quando eu me reunia com os
antigos colegas do colégio o clima de decepção era flagrante. Os exaltados
daquela época mantinham o discurso libertário e agressivo:
- Se tivéssemos elegido um presidente, esse coronel jamais
estaria lá! Mas as eleições estão aí. Vamos dar nossa resposta na urna!
O garoto desviava o olhar. De repente, me vi o mais chato
professor de História do mundo, mas era a minha história. Contei que eu tinha
me formado às vésperas da eleição do Collor e foi durante seu governo que eu
fiz minha pós-graduação. Logo, também pintei a cara, fui às ruas e vibrei
quando derrubamos aquele cancro das Alagoas. Aí, fui para os Estados Unidos
fazer meu mestrado, mas voltei sem concluí-lo. Como eu sempre manjei de
Matemática, a escola em que eu estudei me contratou como professor. E veio
Plano Real, Fernando Henrique, importações, privatizações, eu casei, tive
filhos e aqui estou.
- Mas você só foi rebelde assim? – a admiração acabava.
Respondi que sim.
O menino amuou. Não queria, como os da sua idade, se rebelar
por bobagens adolescentes. Mas hoje não havia como se rebelar. Casas, talvez,
até houvesse, mas será que vale a pena? Olhou fundo e me disse:
- Se é pra ser rebelde como você, tio, prefiro ficar com o
meu Playstation. Eu estava certo. Rebelde é lorota de aula de História mesmo! –
e foi embora puto com tanto tempo perdido. Seu mundo em construção tinha ruído.
Talvez criasse antipatia por professores de Matemática agora, mas só pelos que
dizem ter sido uma coisa que não foram.
Francisco Libânio,
06/06/11, 11:23 PM,
Mongaguá
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