terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Monet para todos

A beleza é universal.


Tenho pra mim que nada alimenta mais a alma que a Arte. Mais até do que nos alimenta uma excelente iguaria culinária. Seja como for e tomando por verdadeira essa boba comparação, estou num ótimo restaurante – um museu – a me fartar com uma grande iguaria francesa, um cardápio recheado com pratos modernistas servidos, principalmente, pelo chef Monet. É um extenso self-service em que muitas pessoas, a maioria aparentando muito mais garbo, muito mais classe que eu, sorvem suas refeições da forma mais fleumática possível. Discretos “oh” pipocam. Pequenos grupos, quase sempre pares, trocam impressões sussurradas sobre o cardápio. Eu estou sozinho e não conheço ninguém com quem possa dividir meu parecer sobre os quadros. Nem sei se isso é necessário. Minha alma está sendo bem servida em sua solitude e prefere não ouvir outras opiniões. Estou satisfeito como todos no recinto. O chef Monet está de parabéns. Assino embaixo de todas as boas referências que lhe deram durante todos esses anos. Em meio do meu prazer artístico-alimentar sou interrompido por uma fala alheia mais alta que o habitual:
- Bonitos esses quadros, né, moço?
Viro-me ao dono da voz. Um senhor de (suponho) quarenta anos chegando tortuosa e descuidadamente aos cinquenta. A barba por fazer e os cabelos desgrenhados conflitam com a pasta que envolve o local. Homens imberbes ou de polidos e cuidados bigodes olham o meu interlocutor com desagradável surpresa. Mulheres em tailleurs finos e bem recortados estranham-no como um verdadeiro invasor. A presença incomoda. Vejo que a digestão cultural de muitos foi solenemente agredida. Meu interlocutor não dá pelo que provoca, mas percebo que estranha o meu silêncio. Oras, ele me fez uma pergunta. É de bom tom que seja respondido.
Observo um pouco mais o ambiente. O mal-estar, ainda que fleumático como pede a ocasião, é indisfarçável. Indisfarçável e passível de ser eliminado. Perto do meu interlocutor dos seguranças o medem com uma postura impassível, mas defensiva. De onde surgiu esse homem? O que ele quer aqui? Ao meu destoado interlocutor, dois sentimentos o abstraem: A beleza do quadro que ele mira como se procurasse um detalhe, uma nuance e a minha grosseria. Ele me fez uma pergunta. Um mero aceno de cabeça servia como resposta. Não precisa falar. Noto que todo o estranhamento dirigido pela assistência encantada com Monet e agredida com sua presença não ofende mais que o meu silêncio. Sinto-me desaprovado. Certamente, se soubesse que eu fui perguntado, ainda que de forma tão simples, o público não veria mal nenhum em não responder. Ele não é um dos nossos. Aqui não é o lugar dele. Mas a mim me incomoda. O velho me fita com uma ponta de mágoa. Não posso com isso.
- Sim, são realmente muito bonitos. – respondo. O mal-estar no ambiente não está desfeito, mas o meu mal-estar desapareceu com essa janela que abri. Um interlocutor e eu continuamos a admirar Monet e degustar cada um de seus quadros. Mais uma vez observo o salão. Senhoras bem vestidas e maquiadas conversam apontando meu interlocutor, sua roupa maltrapilha, ainda que deva ser a melhor. Do outro lado, o incômodo é flagrante. Ouço reprovações mais audíveis. Talvez para serem ouvidas pelo meu interlocutor que nem faz caso.  Continua contemplando cada quadro com o apetite de quem não come há dias. Certamente, um almoço dessa magnitude ele nunca teve. Da minha parte, de repente, cada prato tem um tempero a mais. Meu interlocutor não me dirige mais a palavra. Não pergunta, não comenta. Porta-se como um conhecedor de arte. Não nota nada o que o rodeia. Nem a mim. Até eu deixei de existir. Sou eu que, além de Monet, também aprecio o interesse do senhor que se sacia com tão bem posto cardápio.
Após o último quadro, me preparo para ir embora. Estou empanturrado de Monet. Minha dieta artística está em dia. À porta da saída do museu, meu interlocutor daquela hora me aborda pela segunda vez:
- O nome do pintor, moço, qual é mesmo?
- Claude Monet, francês. Precursor do Impressionismo.
Ele me agradece e sorri. Volta ao seu mundo árido de belezas, mas com a alma repleta de belezas. E essa beleza o fez maior que tudo, maior que a reprovação, que a chacota, só não maior que Monet.

Francisco Libânio,
04/12/12, 10:50 PM

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