A beleza é universal.
Tenho pra mim que nada alimenta mais a alma que a Arte. Mais
até do que nos alimenta uma excelente iguaria culinária. Seja como for e
tomando por verdadeira essa boba comparação, estou num ótimo restaurante – um museu
– a me fartar com uma grande iguaria francesa, um cardápio recheado com pratos
modernistas servidos, principalmente, pelo chef
Monet. É um extenso self-service em
que muitas pessoas, a maioria aparentando muito mais garbo, muito mais classe
que eu, sorvem suas refeições da forma mais fleumática possível. Discretos “oh”
pipocam. Pequenos grupos, quase sempre pares, trocam impressões sussurradas
sobre o cardápio. Eu estou sozinho e não conheço ninguém com quem possa dividir
meu parecer sobre os quadros. Nem sei se isso é necessário. Minha alma está
sendo bem servida em sua solitude e prefere não ouvir outras opiniões. Estou
satisfeito como todos no recinto. O chef Monet
está de parabéns. Assino embaixo de todas as boas referências que lhe deram
durante todos esses anos. Em meio do meu prazer artístico-alimentar sou interrompido
por uma fala alheia mais alta que o habitual:
- Bonitos esses quadros, né, moço?
Viro-me ao dono da voz. Um senhor de (suponho) quarenta anos
chegando tortuosa e descuidadamente aos cinquenta. A barba por fazer e os
cabelos desgrenhados conflitam com a pasta que envolve o local. Homens imberbes
ou de polidos e cuidados bigodes olham o meu interlocutor com desagradável
surpresa. Mulheres em tailleurs finos e bem recortados estranham-no como um
verdadeiro invasor. A presença incomoda. Vejo que a digestão cultural de muitos
foi solenemente agredida. Meu interlocutor não dá pelo que provoca, mas percebo
que estranha o meu silêncio. Oras, ele me fez uma pergunta. É de bom tom que
seja respondido.
Observo um pouco mais o ambiente. O mal-estar, ainda que
fleumático como pede a ocasião, é indisfarçável. Indisfarçável e passível de
ser eliminado. Perto do meu interlocutor dos seguranças o medem com uma postura
impassível, mas defensiva. De onde surgiu esse homem? O que ele quer aqui? Ao
meu destoado interlocutor, dois sentimentos o abstraem: A beleza do quadro que
ele mira como se procurasse um detalhe, uma nuance e a minha grosseria. Ele me
fez uma pergunta. Um mero aceno de cabeça servia como resposta. Não precisa
falar. Noto que todo o estranhamento dirigido pela assistência encantada com
Monet e agredida com sua presença não ofende mais que o meu silêncio. Sinto-me
desaprovado. Certamente, se soubesse que eu fui perguntado, ainda que de forma
tão simples, o público não veria mal nenhum em não responder. Ele não é um dos
nossos. Aqui não é o lugar dele. Mas a mim me incomoda. O velho me fita com uma
ponta de mágoa. Não posso com isso.
- Sim, são realmente muito bonitos. – respondo. O mal-estar no
ambiente não está desfeito, mas o meu mal-estar desapareceu com essa janela que
abri. Um interlocutor e eu continuamos a admirar Monet e degustar cada um de
seus quadros. Mais uma vez observo o salão. Senhoras bem vestidas e maquiadas
conversam apontando meu interlocutor, sua roupa maltrapilha, ainda que deva ser
a melhor. Do outro lado, o incômodo é flagrante. Ouço reprovações mais audíveis.
Talvez para serem ouvidas pelo meu interlocutor que nem faz caso. Continua contemplando cada quadro com o
apetite de quem não come há dias. Certamente, um almoço dessa magnitude ele nunca
teve. Da minha parte, de repente, cada prato tem um tempero a mais. Meu
interlocutor não me dirige mais a palavra. Não pergunta, não comenta. Porta-se
como um conhecedor de arte. Não nota nada o que o rodeia. Nem a mim. Até eu
deixei de existir. Sou eu que, além de Monet, também aprecio o interesse do
senhor que se sacia com tão bem posto cardápio.
Após o último quadro, me preparo para ir embora. Estou
empanturrado de Monet. Minha dieta artística está em dia. À porta da saída do
museu, meu interlocutor daquela hora me aborda pela segunda vez:
- O nome do pintor, moço, qual é mesmo?
- Claude Monet, francês. Precursor do Impressionismo.
Ele me agradece e sorri. Volta ao seu mundo árido de belezas,
mas com a alma repleta de belezas. E essa beleza o fez maior que tudo, maior
que a reprovação, que a chacota, só não maior que Monet.
Francisco Libânio,
04/12/12, 10:50 PM
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