Um gramofone é anacrônico, mas é um charme só.
Eis que em meio às minhas leituras, a palavra anacrônico aparece de supetão e assalta
toda a noite. Num conto, num poema, num artigo? Não lembro em qual texto ela
estava, por que, num átimo, ela se fez mais importante que tudo. “Vou jogá-la
numa crônica e ver que bicho sai!” decreto para depois desistir e logo decretar
de novo, como se vê. O texto se desenvolverá filho de uma palavra.
Antes de qualquer tentativa, vou ao dicionário me certificar
sobre seu significado. Não há a dúvida, mas mesmo as certezas precisam se
fortalecer para que sejam, em sua superficial existência, absolutas. Essa,
nesse caso, é. Anacrônico é mesmo algo “que está em desacordo com a moda, o
uso, constituindo atraso em relação a eles” ou, ainda mais, “avesso aos
costumes hodiernos; retrógrado”. A palavra, devidamente significada, precisa
agora de uma crônica que a comporte. Não uma crônica anacrônica que, mais que
rima rica e óbvia, não venceria o dia seguinte em sua existência. Seria, no
muito, uma peça escrita numa noite como tantas. Tudo graças a uma palavra que
aparecera num texto que li e nem me recordo qual foi.
Com dois parágrafos em adiantado, a crônica se desenrola.
Paro e penso como dar à palavra – feia, concordemos – um texto que fuja do
adjetivo que ela representa. Trago a mim lembranças de momentos anacrônicos,
busco em minha breve lista de conhecidos e amigos, pessoas anacrônicas, fatos
anacrônicos por mais modernos que sejam. Encaixo algumas pessoas e seleciono
alguns fatos. As pessoas tiro por não serem só anacrônicas, mas terem
qualidades que deixam tal anacronismo como uma mancha imperceptível na
existência e na relação. Os fatos mereceriam mais atenção devido ao seu
anacronismo, mas percebo a armadilha: Se eu falar sobre os fatos anacrônicos,
essa crônica será igualmente anacrônica. Eles me venceriam e rebaixariam um
pedaço da minha obra à categoria que pertencem. Não quero a perenidade eterna
do meu texto. Não sou arrogante a esse ponto. Também não acho que nenhum
escrito meu mereça o condenável esquecimento ao último ponto. É preciso que
alguém, nem que seja uma única pessoa nem que seja a minha mãe, leia isso e
comente, mesmo sem ser ouvida. Uma sobrevida pobre, mas digna. Um texto
anacrônico teria esse sucesso, mesmo efêmero?
Paro e recordo que muitos grandes escritores, se lidos nos
tempos de hoje, seriam tomados por anacrônicos. Muitos falam sem timidez de
escrever à máquina. Quem escreve à máquina hoje? Jamais pensariam eles, às
voltas com suas máquinas de escrever, que haveria anos depois a Internet. Que
um computador faria o que fazem as suas máquinas e muito mais. Alguns falam
sobre fumar, uma propaganda discreta, mas aberta sobre o tabagismo, hoje
anacrônico como demonizado. Conforme ando para trás em lembranças de autores,
por mais que sejam célebres em seus livros e sua obra, sempre há um
anacronismo. Ruas que não mais existem, trajes que não mais se usam, hábitos
que não mais se cultivam... A Eternidade traz no seu bojo sua própria moda que
não tem eco nos dia de hoje como não teve em outros. Palavras, gírias,
contextos. O mundo evolui, nossas vanguardas são caretice quando menos
esperamos.
É em meio a esse turbilhão (que alguns do meu tempo
chamariam jocosos de “viagem” e sabe-se lá como se chamará depois) que constato
tristemente: A literatura é anacrônica. Escrever é anacrônico. Temo que ler
também o seja. Situação estranha. Não queria ser anacrônico, mas digito
anacronismos continuamente. Poupei pessoas que julguei anacrônicas, mas me
descurei. Uso palavras que, quem ler eventualmente num momento de flashback, não saberá o que elas significam,
pois são anacrônicas. Tão anacrônicas quanto a própria crônica casual e sem
bandeiras, sem defesas apaixonadas por cores ou ideias. A sensação, ao chegar
aqui, é de derrota. O desejo é de apagar tudo isso e tentar não ser anacrônico,
viver o atual, o que chega. Mas quantos escritores, muito mais a frente dos
seus tempos, hoje continuam a frente de um tempo que eles nunca ousariam viver?
Não são muitos, um ou dois. Talvez estes sejam iluminados, ungidos e com talento
atemporal. Quantos atemporais existem em áreas além da Literatura? Os mestres?
Os cristos? Os budas? Não seriam eles também, mesmo lembrados pelos séculos e
séculos, anacrônicos? Já não os são, para muitos? Reflito. Continuo meu
anacronismo e a crônica anacrônica, com rima rica e óbvia sai. Será anacrônica,
sim. A partir de quando não sei e não me importa. Mas prefiro a certeza de que
logo ela e eu acompanharemos, arrogantemente, os gênios, os sábios, os mestres,
os cristos e budas a buscar uma modernidade que dificilmente irei alcançar.
Assim sendo, encerro esta crônica sem pensar nessa palavra da definição
dicionarizada hodierno. Que outro,
num tempo futuro, se inspire, como eu me inspirei numa palavra de um texto
qualquer e faça fama melhor que a minha com essa crônica. Agradecerei a
homenagem quando seu autor se juntar a nós, anacrônicos.
Francisco Libânio,
10/03/14, 11:14 PM
Nenhum comentário:
Postar um comentário