sábado, 25 de abril de 2015

Premonição

Nunca tinha acontecido aquilo. Não na fila da lotérica da pequena cidade, evento cotidiano em sua vida. Lá ele pagava suas contas, acertava seus cálculos bancários, ocasionalmente cantava uma moça na fila ou uma das atendentes (uma, inclusive, quase já seduzida pela lábia) e discutia futebol ou engatava amizades. A fila da lotérica era um rico momento social. Só que aquilo, aquilo nunca tinha acontecido antes.
Aquilo era uma conexão com o Além. Na fila da lotérica estava sentindo um vento frio, um tremelique, um formigamento, e isso era novidade. Pensou se tratar de alguma intervenção superior, um contato que viesse mudar a sua vida, por que não? Estava na fila da lotérica. Sempre fazia seu jogo e quem sabe o Destino não lhe sorriria. Não que acreditasse nessas coisas, mas duvidar também não duvidava.
O transe durou toda sua estada na fila,  longa e demorada aquele dia, o que fez sua conversa com o Desconhecido ser demorada e bastante esclarecedora, ao menos para ele. Quando chegou sua vez – não com a atendente da paquera, mas por uma mocinha sardenta e impaciente – falou com voz alterada, grave:
- Faça o favor de pagar minha luz, minha água. – e deu os boletos – e aproveite também para fazer um jogo na Mega. – Deu o canhoto em branco.
- Quer que a máquina faça o jogo? – perguntou mecanicamente a moça.
E ele sempre deixava que a máquina escolhesse os números. Não naquele dia.
- Não! Tenho os números comigo.
- O senhor devia anotar antes, né?
- Desculpe. É que eles me vieram ditos como uma psicografia, a senhorita entende?
Não entendia. Era evangélica, não acreditava nessas conversas. Fez um discreto desconjuro e voltou a atender o rapaz, cliente antigo da casa.
- Pois então diga os números. Vou fazer pro senhor.
- O primeiro é... É... Seis! Isso! Seis! Dia do aniversário da minha finada avó.
O seis foi devidamente computado. A feição do rapaz, ainda que tranquila, era lívida, estava branca. Ela pediu o outro número.
- Coloque aí. Outubro? Outubro é que número mesmo no calendário?
- Dez.
- Isso! Dez! Ponha aí, dez. Mês de nascimento do meu avô Paulo. Outubro. Dez. Era o número de sorte dele, minha avó dizia.
Assim a moça ia digitando os números e sabendo da história dos antepassados. Mas a fila se acumulava e ela pedia pressa com o “papo com seus avós”. Forçou pra não ser deselegante. Faltavam mais quatro números.
 - Ponha... Trinta e cinco! Isso! Idade que meu avô Pedro teve quando meu pai nasceu. Trinta e cinco! Ou trinta e seis? Meu Deus! E essa agora? Tenho dúvida!
- Vou pôr trinta e cinco porque tenho certeza que seu avô ainda tinha bala na agulha pra fazer outro filho. – A intervenção sarcástica da moça desagradou o rapaz. Estava caçoando da sua família e de seu momento transcendental? Não se agastou. Tinha ainda mais três números. Tentou manter seu contato e cravou:
- Vinte e sete. Isso! Vinte e sete. A idade com a qual meus avós se conheceram. Ambos eram da mesma idade.
- Eles estão falando com o senhor aí? – perguntou a moça entre curiosa, incrédula e galhofeira.
- Você não entenderia se eu explicasse. Já está acabando... Deixe-me ver... Acho que... Quarenta e um! Quarenta e um era o número da primeira casa em que meus pais moraram. Foi antes de eu nascer. Tempos difíceis que ajudaram meus pais a vencerem na vida. Coloque aí quarenta e um!
- Estamos indo bem apesar de tudo. – disse ela aliviada. – Mais um numerozinho e acabamos aqui.
Nesse momento, o rapaz desmaia. Alvoroço na lotérica. A moça fica perplexa. Sabia que esse negócio de conversa com o outro mundo não é coisa de Deus e resolveu adiantar o lado de todos. Viu no relógio. Era três e trinta e dois quando do desmaio. Colocou o último número, trinta e dois, e fechou a aposta. Quando acordou, ele não se lembrava de nada. Um teste rápido, perguntas sobre os idos de sua família. Ele não conheceu seus avós. Passou o bilhete da aposta e chamou o próximo. O rapaz saiu confiante. Quando lhe contaram o que tinha se passado acreditou mesmo que uma intervenção espírita podia dar uma mão na sua sorte. Acreditou com toda a fé no jogo da semana. Em vão. Nenhum dos números que o Sobrenatural lhe ditou foi sorteado. Passaram longe. Nem o cheiro. O mais próximo foi um solitário trinta e três, primo próximo e desnecessário do momento do desmaio.

Francisco Libânio,
15/04/14, 9:23 PM

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