- Senhora Anastácia, precisamos entender exatamente o que
nos trouxe aqui. A senhorita disse que houve um caso de violência doméstica,
confere?
- Na verdade não, senhor delegado. Houve uma cena de amor.
- Mas conto na senhorita, assim, de primeira vista, cinco
hematomas. Estou com medo do que o exame de corpo-delito pode encontrar além do
que é aparente.
- Sim, é que meu amor com o namorado às vezes transcende o
que a classe média diz ser amor, entende?
- Não entendo.
- Senhor delegado, eu e meu namorado somos pessoas que, na
cama, deixamos o desejo falar mais alto. Soltamos os bichos que temos dentro da
gente e abrimos a mente pra fantasias.
- Anote isso. – pediu o delegado a um polícia que o
acompanhava – Principalmente a parte dos “bichos dentro da gente”. Dona
Anastácia, tem algo mais a dizer sobre o delito?
- Não até porque não acredito que tenha havido qualquer
delito nesse quarto, senhor delegado.
- Mas a senhora falou de uma violência doméstica ao chamar a
Patrulha...
- Perdão, delegado, mas o senhor não está contextualizando
os termos. Disse que houve um encontro doméstico casual com uma violência
deliciosa. Violência doméstica foi uma conclusão errada que o senhor fez.
O delegado coçou a cabeça sem ter o que acrescentar. Dois
polícias que o acompanhavam fizeram rápida busca pelo quarto. Acharam algemas,
um chicote e uma arma branca, um picador de gelo que estava debaixo da cama.
Olhou mais uma vez Anastácia toda lanhada e cheia de marcas de agressão. A
violência contra a jovem era evidente, mas muitas coisas estavam mal
explicadas. Sim, foi ela quem tinha chamado a Patrulha frisando que viesse mais
de um homem, uns dois ou três. O chamado preocupou o delegado daquela tranquila
cidade e escalou dois. A última ocorrência em que precisou se deslocar ao local
do crime foi uma briga de casal há três anos. Certa forma já tinha experiência
em resolver problemas conjugais e como resolveu tudo de forma muito diplomática
(proibiu o marido de chegar perto da atua ex-esposa e a proibiu de telefonar
pra ele, inclusive bloqueou o número do esposo, nenhum dos dois era santo),
achou que poderia usar da prática nesse novo episódio. Só que aquela vez não
teve porrada, não teve machucado e muito menos uma mulher que não lamentava as
escoriações.
- O senhor precisa ver como ele ficou. E quer saber? Não nos
arrependemos, viu? – teria dito em seu depoimento.
- E cadê namorado? Evadiu-se do local?
- Foi comprar cigarro e pão pro café. Já-já tá de volta.
- Ele viu a senhorita ligar?
- Não, liguei quando ele tinha saído. Ele vai ter aquela
surpresa ao ver isso aqui.
Aí o delegado achou estranho mesmo. Recapitulando. Houve uma
cena de sexo (“de amor, delegado, amor pra valer!” teria corrigido a moça
enquanto ele matutava em voz alta) e durante esse encontro houve violência que
deixou a mulher toda machucada, mas, segundo ela, ele também não estava
inteiro. Havia uma arma branca, um picador de gelo, mas a moça esperou o
namorado se ausentar pra chamar a polícia. Pensou em chamar algum psiquiatra
pra uma entrevista com a moça que, certamente, não estava no seu juízo
perfeito. Achou melhor não envolver mais gente no rolo. Cidade pequena, sabe
como é. Olhando de novo para o picador de gelo, achou melhor guarda-lo para
usar quando conviesse. E em mais entrevistas com a moça, que agora acendia um
cigarro e fumava com o prazer da realização, nada era esclarecido. Apenas a
satisfação do orgasmo e do sangue eram notórios em sua fala. Não havia homem
melhor que o dela, um verdadeiro representante da espécie, talvez o último.
E foi durante essa jogação de confete que adentra o quarto o
namorado. Ao pisar um pé porta adentro os dois polícias não têm dúvida: Metem
as armas na fuça do suposto agressor que se assusta com as máquinas, mas se
alivia ao ver a cara da parceira estirada na cama. Só diz uma palavra e ri
maliciosamente após o sorriso cúmplice dela.
- Safada!
- Muito! – respondeu.
- Senta aí, malandro! Vamos levar um papo! – o delegado
resolve impor a autoridade que a função exige. Mandou que os polícias
abaixassem as armas e começou as perguntas de praxe: Nome (Cristiano), ocupação
(garçom, mas faço uns bicos), filiação, documentos, tudo em ordem.
- Me conta aí o que
houve. – mandou o delegado.
- Assim, doutor, eu e minha morena tivemos um coito como
todo casal que se preza tem. Acontece que ela gosta muito de ler esses livros,
sabe? E leu uns aí que viu a mulher tomando uns tapas do namorado e ela ficou
doida. Falou que ou eu fizesse igual ou já era. A princípio não achei muito
certo porque em mulher não se bate nem com uma flor, né? Mas ela insistiu.
Chego em casa e ela me mostra essas algemas, esse chicote e umas coisas mais –
e mostrou outros artefatos guardados que nem chegaram a ser usados no coito. O
delegado olhou pra mulher, que fumava mais um cigarro enquanto assistia a toda
a conversa.
- Eu não ia usar tudo de uma vez, né? Um pouco de cada vez.
- E ela disse que o senhor também não ficou ileso nesse
encontro. O senhor pode ter a gentileza de tirar a camiseta por favor? – pediu
o delegado.
Foi obedecido e se arrependeu. O rapaz tinha o corpo
arranhado, tantos hematomas quanto a moça, marcas de cigarro no peito, nos
ombros e nas costas (“Foi a única coisa que não gostei” disse ele. “É, acho que
abusei, mas deu um pouco de tesão, fala aí.” Admitiu ela que teve um aceno
positivo de cabeça por resposta). Foi quando o delegado sem entender com aquela
perversão mútua e consentida se voltou pra moça e perguntou:
- Afinal, dona Anastácia, por que a senhorita chamou a
Patrulha se tudo aqui, por mais nojento e doentio que seja, foi consensual?
- Porque eu queria contar pra cidade inteira a trepada eu a
gente deu. E resolvi começar pelas autoridades. Depois vou contar pras
vizinhas. Aquelas vão morrer de inveja!
Indignado com o desaforo e querendo um motivo pra triunfar,
o delegado resolve apelar. Pega o picador de gelo e esfrega na cara do
namorado:
- E que é isso aqui que achamos embaixo da cama? O senhor
pode explicar?
- Não acredito! Meu picador de gelo! Tô procurando esse
troço há um tempão. Achei que tinha perdido. É o único defeito dessa mulher
delegado. Bagunceira pra caramba!
Chamou os polícias e foi embora. E a casa, de fato, estava
virada de pernas pro ar.
Francisco Libânio,
15/02/15, 6:12 PM