Ninguém brincando em serviço.
Quarta-feira de Cinzas. Assisto à apuração dos desfiles das
escolas de samba com algum interesse. Mais interesse que tive em relação aos
próprios desfiles, aos quais assisti até que o sono viesse e acompanhei com a
leiguice da maioria e o encantamento de muitos face às belas passagens na
Sapucaí. Como leigo que me declarei antecipadamente, não julgo, não dou louros
nem deprecio o que vejo. Por mim, haveria um empate técnico e leigo. E todas as
escolas seriam campeãs sem contestação.
Também não assisto à apuração com torcida. Tenho as escolas
por que tenho mais simpatia e as por que tenho menos. Talvez a tradição me
aconselhe invisível a gostar de uma ao invés de outra. Talvez, eu seja
ludibriado. Não moro no Rio de Janeiro, logo nenhuma agremiação representa a
“minha comunidade”. O chão me é estranho. É algo inexplicável, mas, por outro
lado, não vejo necessidade de explicações ou satisfações. Apenas me sento e
assisto. Talvez para vir sono ou, melhor, para espantá-lo.
Quando começa o certame, ao ver tantas pessoas que vivem
para aquele momento, às vezes, mais do que o desfile em si, percebo que a
expressão “brincar o carnaval” serve apenas para os leigos como eu, que veem os
desfiles como um festival de beleza, uma ópera ao ar livre ou, maldosamente,
uma apologia ao pecado, uma adoração à carne, para merecer o dito nome. Nós
brincamos o carnaval, nós damos a ele a relevância necessária à nossa vida de
algo a se criticar ou, como disse o Poeta, uma alegria fugaz que nos acalenta
por quatro dias. Que faz alguns ficarem acordados ou que faz este Cronista ter
sono, mas dormir encantado com a imaginação colorida transposta na avenida. Mas
esse sou eu, somos nós, somos muitos. Para aqueles poucos que estão ali debaixo
do sol de fim de verão, sob os refletores apagados da Sapucaí e sem o espírito
carnavalesco das brincadeiras serão duas horas que decidirão trezentos e
sessenta e cinco dias de trabalho, estresses e emoções de uma pequena multidão.
Em nome dela, eles sofrerão, pelas próximas horas, com uma voz robótica a
soltar números e décimos. Essa voz neutra roubará esperanças as substituindo
por imenso júbilo ou por igual e pior consternação. Essa voz nada mais é que um
oráculo de alguns pouquíssimos e nada leigos juízes alheios a emoções de
comunidades, torcidas esfuziantes e dias de trabalho. Cada um faz a sua parte,
diriam em uníssono a quem os criticasse.
Corre a apuração. Os que eram favoritos e são fustigados com
notas imerecidas, mas certeiras veem o título fugindo como areia dos dedos. No
outro lado, no entanto, está um que, favorito ou não, recebe esses pontos
perdidos e os converte em liderança, em sucesso. A liderança ora fica firme ora
ameaçada. Um quesito e quem estava na ponta se vê engolido por concorrentes. Na
pista, as vaias e hurras multiplicam, aumentam de volume. O título está mais
perto, está mais longe. A voz robótica tira os véus postos pelos juízes nos
dias anteriores. Os resultados ficam claros, o título se decide e, em duas
horas, o primeiro grande campeão brasileiro não vem de um campo de futebol, mas
de uma avenida especialmente projetada para aquilo.
Pois agora, uma comunidade sai feliz. A agonia de alguns
dentre os poucos presentes vira celebração. O trabalho de um ano foi
recompensado. Aquela pequena multidão, entre tantas, pode, finalmente, brincar
o carnaval sem compromisso com regras, com julgadores e sem a pressão
competitiva da véspera. O dia para esse carnaval está marcado. Será no sábado
após a quarta-feira de Cinzas. A Quaresma, para esse vencedor, não poderia
começar melhor. Está combinada a saideira carnavalesca para, então, voltar à
vida normal, mas dessa vez com um sorriso no rosto e a sensação de dever
cumprido.
Francisco Libânio,
05/03/14, 8:29 PM
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