Sim, é baseada em fatos reais.
Lembro como se fosse hoje. O jogo entre o meu time contra o
da minha pequena cidade era anunciado há tempos. Desde quando o time da cidade
subiu para a Primeira Divisão já se esperava pelo enfrentamento com os grandes
do Estado. Quando a tabela marcou o jogo entre o time daqui contra o meu time,
a cidade se fez em polvorosa e eu muito mais. Seria a primeira vez que
assistiria ao meu time no estádio. Nada de maracanãs ou pacaembus. O jogo seria
no acanhadíssimo campo da cidade, aquele que acomodava quinze mil almas sem
padrão FIFA, sem estofamentos. Bunda no concreto e que seja feliz. Para mim, o
sacrifício em ver meu time ao vivo valeria a pena.
Chegando o dia do jogo, a cidade se empolgava como se
empolgava um amigo meu. Empolgação que virou surpresa e reprovação:
- Não acredito que você vai torcer para os homens! E amor
pelo seu chão, onde fica?
- Não fica. E nem vem que eu sei que você não torce para o
time daqui, mas pra outro. Deixa de ser hipócrita! – respondi. Não aguentava
encheção e bairrismo de quinta.
- Mas é o time da nossa cidade, caramba! Temos que mostrar
apoio, principalmente quando é contra time graúdo. Não dá pra virar a casaca
nem por noventa minutos?
Falava isso porque contra o seu time o da nossa cidade teria
que viajar para a Capital. Ou seu discurso seria outro, tenho certeza. De
qualquer forma, marcamos irmos juntos ao estádio.
No fatídico dia, passei na casa do meu amigo e fomos. Em
mais uma tentativa de me fazer culpado, confrontou as cores do time do nosso
rincão frente à camisa que eu usava.
- Não mudou de ideia mesmo, hein? Vai ser piada durante um
ano se seu time perder.
Se meu time
perder. A condicional mudava toda a história. A situação do time local na
tabela não era desesperadora, mas era franco o favoritismo do meu time. Também
não iria fazer troça caso meu time ganhasse. Uma porque soava obrigação. Outra
porque eu não era louco. Chegamos ao estádio e, fora a gozação de um e outro
conhecido, minha camiseta de cores forasteiras não provocou nenhum grande
problema. Quanto a isso e diferente do que se vê sempre na TV, as torcidas se
comportaram exemplarmente. Mesmo os torcedores que pegaram estrada pra ver o
meu time não ofereceram problemas.
Começa o jogo sob uma chuva de aplausos. Certa forma, o
sonho de uma pequena cidade se realizava naquele momento. Para a minha
surpresa, o time da nossa cidade sai pra cima sem medo de uma goleada.
Meu time
assimila bem os ataques e também leva perigo aos meus conterrâneos. Meu time
pressiona enquanto o time da nossa cidade segura a onda, ataca pouco, mas
quando o faz é incisivo. Tão incisivo que – surpresa! – meus conterrâneos abrem
o placar numa cochilada da defesa do meu time. O estádio vibra em hurras. Meu
amigo se diverte às minhas custas.
- Deixa estar. Foi infelicidade. – respondo entre os dentes.
Estou calmo, mas maculado.
O jogo fica complicado. A vantagem enche de brios o time da
minha cidade que, se fez um, pode fazer outro e luta por isso. Meu time, ao
contrário, parece ter sentido o golpe. A tranquilidade acaba junto com o
primeiro tempo em um a zero. Quem passa por mim tira uma casquinha. Digo que o
segundo tempo será diferente.
E começa me dando certa razão. Meu time, já no primeiro
ataque, vem violento para a meta local e empata. O estádio vem abaixo. Eu me
contenho. Não vou comemorar. Não ali nem àquela hora. Penso que o jogo ficará
naquilo. Imagino que meu time não vá querer sapear uma goleada histórica agora
que, aparentemente, tem o controle da situação nem o time da cidade vá ser
camicase ao procurar outro gol. Ledo engano! O time da casa retoma a bola e
chuta duas bolas à queima-roupa contra a minha meta. Goleiro fez milagres. Numa
terceira oportunidade, o atacante da casa não perdoa. Faz o segundo gol e corre
para os braços da torcida. Está tudo bem agora? Aparentemente. Meu time parece
tão surpreso com o revés que não agride mais. Procura se restabelecer, mas são
cerca de quinze mil jogadores – menos a torcida visitante e eu – extras a
empurrar e desfraldar as cores da cidade. A empolgação das arquibancadas
contagia os jogadores da casa. Outro ataque fulminante. Outro gol. Quando vejo
que a coisa não pode ser pior, um zagueiro do meu time faz um pênalti inútil.
Quatro a um para o time do meu chão. E antes que o juiz trile o apito final,
vem o gol da humilhação. Cinco a um. Festa em minha cidade. Meu amigo não sai
do meu pé. A cidade não sai do meu pé. A previsão do meu amigo se cumpre. Um
ano de gozação. Situação insuportável. Foi um jogo, eu sei, mas foi um dia
histórico. Quase uma vitória do oprimido contra o opressor além da manjada
vitória de Davi frente a Golias. Voltei pra casa com cinco boladas na cabeça
quando a cidade voltava em júbilo.
Em casa, as entrevistas dos jogadores do meu time
dizendo que “hoje foi o dia deles” não serviram pra me animar nem perdoá-los.
Deles quem, cara-pálida? Meu não foi como não foi o resto da semana. Naquele
ano, meu time foi campeão e, ao contrário do que até a torcida acreditava, o
time da minha cidade não caiu pra Segunda Divisão. Outros jogos aconteceram
entre os dois times no mesmo acanhadíssimo estádio e, claro, o raio não caiu
duas vezes no mesmo lugar. De qualquer forma, eu que ainda moro na pequena
cidade, sempre que meu time vem pra cá, um dia antes eu viajo e vejo o jogo
pela TV.
Francisco Libânio,
28/02/14, 5:34 PM
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